quinta-feira, 23 de agosto de 2012

À beira-rio

Vem sentar-te comigo, Lidia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar, muito longe, para ao pé do fado,
mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena casarmo-nos,
quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
e sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
e sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
no colo, e que seu perfume suavize o momento -
esse momento em que sossegadamente não cremos em nada,
pagãos inocentes da decadência.

Ao menos se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio
Pagã triste e com flores no regaço.
(Ricardo Reis)

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